Programa de extensão da FO

Programa de extensão da FO estimula acompanhamento permanente aos idosos

Por Marina Salles Teixeira
12/11/2013

Coordenado pela professora Maria Luiza Frigerio, conhecida entre colegas e pacientes como professora Malu, o programa de extensão Envelhecer Sorrindo faz parte de uma iniciativa da Faculdade de Odontologia (FO-USP) cujo intuito é aproximar a Universidade de São Paulo da sociedade.

O programa trabalha desde 1999 para facilitar não só o acesso da comunidade de fora da USP a tratamentos protéticos, como também para promover a inclusão social do idoso e oferecer a esse grupo o contato com profissionais competentes nas mais diferentes áreas de seu interesse. O atendimento é feito no Departamento de Prótese da FO durante o período da manhã às terças e quartas-feiras, sendo acompanhado tanto por especialistas da odontologia, como da fonoaudiologia, fisioterapia e psiquiatria.

Em entrevista para a Revista da PRCEU, a professora Malu relata quão importante é a responsabilidade social do projeto e como esse trabalho tem refletido em benefícios, seja para a pesquisa acadêmica, seja para os pacientes que dele fazem parte. Indo além de uma assistência pontual ao idoso, o programa busca atingir também o modo como essas pessoas encaram a chegada do envelhecimento, o que é possível observar nos relatos contagiantes dessa profissional dedicada à saúde.

Revista Cultura e Extensão USP – Como surgiu o Programa Envelhecer Sorrindo?

Maria Luiza Frigerio – O programa surgiu em 1999, no ano Internacional do Idoso. Foi quando eu estava conversando com o pessoal do departamento sobre a minha sensação de que as coisas aconteciam e a gente corria atrás do prejuízo.  E aí, como eu gosto de ler jornal, vi que a Organização Mundial da Saúde, no dia 1° de outubro, ia promover uma ação que o mundo não ia conseguir ignorar e pensei em fazer algo em uma escala menor, aqui mesmo na Faculdade de Odontologia. Assim, fui juntando jornais e levando para as reuniões, até que eu pensei: vai chegar uma hora que não vai mais dar tempo de se planejar, vai chegar o evento e nós não vamos ter dinheiro, não vai ser possível organizar nada. Foi aí que eles falaram “então tudo bem, você fica encarregada de fazer alguma coisa”. Diante disso eu concluí que não estavam me levando a sério, mas mesmo assim decidi levar a ideia adiante, ainda que eu não soubesse por onde começar.

Quando saí de lá tinha gente que falava, “olha, conheço pessoas que trabalham com isso”. Um deu um telefone, outro deu mais um e eu fui ligar, porque até então não tinha nada. Até a data planejada, decidimos realizar três palestras para receber os idosos, tudo com o intuito de fazê-los refletir sobre a importância de estarem vivos. “Que bom que eu estou aqui hoje”, é preciso comemorar a vida, porque tem gente que se pergunta: “por que o idoso não morreu ainda, por que é tão mais devagar, por que gosta de dar palpite em tudo, por que briga com o adolescente da casa?”. Nós queríamos que ali a pessoa tivesse um momento em que ela de fato considerasse que vale a pena viver. E começou assim, no ano que vem, estamos indo para o 15° evento.

RCE – Além do tratamento odontológico, que outras especialidades o programa congrega? Qual a importância de cada uma delas?

MLF – Trabalhamos em conjunto com profissionais da psiquiatria, educação física, fisioterapia e fonoaudiologia. A arte-terapeuta fica na sala de espera e lá ela oferece papel, tinta, o material não importa, o importante é manter o grupo unido em volta da mesa. Nesse espaço, os idosos trocam vivências e percebem que as outras pessoas têm problemas como os deles. Além de entretê-los e funcionar como uma ferramenta de socialização, a arte-terapia também é eficiente na identificação de aspectos que são alheios ao tratamento odontológico.
Um dia desses, por exemplo, a arte-terapeuta veio nos avisar que precisávamos comunicar a família de que uma paciente estava mudando de fase de Alzheimer. Ela disse que a senhora podia se perder porque não lembrava mais o caminho para casa. E eu perguntei: “como é que você sabe disso?”. “Pelo desenho”, ela respondeu. A paciente desenhou uma casa com o teto para baixo e eu achei surreal, criativo, mas a arte-terapeuta me explicou que aquilo era característico de mudança de fase de Alzheimer. Depois disso, nós avisamos a família, que também não sabia, e falamos da necessidade da pessoa andar acompanhada. Aprendemos muito com ela, é bastante interessante.

Outro caso curioso também foi o de um paciente que não higienizava a prótese e nós achávamos que era porque não ensinávamos direito. Tentamos de tudo e estávamos preocupados porque a falta de limpeza causa estomatite protética, a gengiva fica toda vermelha e irritada. A moça que cuidava do atendimento dele falava: “Não é possível, já ensinei, dei escova, produto pra limpar e ele volta aqui com a prótese suja. O que eu estou fazendo de errado?” Decidimos buscar a resposta com a ajuda do Instituto de Psiquiatria e eles nos explicaram que era um problema relacionado à cognição. Isso quer dizer que a pessoa não tem capacidade de absorver a informação, por isso, de nada adianta insistir na informação. Parece simples, mas se você perguntar para um indivíduo que sofre desse tipo de distúrbio “em que ano nós estamos?”, ele não vai saber. “Qual o horário mais ou menos?”.  Para avaliar se é de manhã ou à tarde, dificilmente o paciente vai te responder.

Às vezes o problema não é a prótese, é um problema outro. Também já tive que avisar a filha de uma idosa que ela não estava usando a prótese e que, sendo assim, não fazia sentido continuar indo às consultas. Com 85 anos ninguém quer trocar a prótese, você está acostumado com o seu sapato velho, vai querer um novo? Não vai, certo?! E os filhos já vêm trazer os pais com aquela cara de “porque o médico mandou”, não é mesmo?

O idoso percebe que não está agradando quando ouve: “você vê se usa, afinal, eu faltei no trabalho para te trazer”. E a mãe vira e fala: “eu não quero uma prótese nova, foram você e o seu irmão que decidiram que eu precisava disso”.  A arte-terapia ajuda a gente nesse aspecto, assim, quando o paciente chega na clínica ele já deixou o problema lá fora, o que é bom para ambos os lados. Diminui a ansiedade na hora do atendimento.

Já a fonoaudiologia auxilia em tratamentos que envolvem, por exemplo, a prótese total, que não tem onde se prender, caso você mexa nela com a língua, ela cai, não tem jeito. Você querendo que ela fique, o ideal é trabalhar a musculatura. Depois de uns exercícios de fortalecimento para a língua, pronto, a prótese fixa melhor. E a atividade física também faz parte do processo, partilhamos da ideia: corpo são, mente sã. O projeto tem uma parceria com o CEPEUSP.

RCE – Quais as particularidades do atendimento odontológico aos idosos? Eles precisam de cuidados diferenciados?

MLF – Dos casos que chegam aqui, existem aqueles em que os pacientes sofreram acidente vascular encefálico e eles têm sequelas, sendo uma delas a dificuldade de falar. Agora imagine uma pessoa com a sua parte cognitiva funcionando bem e a sua capacidade motora não, ou seja, ela quer falar, mas não consegue. Precisamos tentar nos comunicar, uma senhora até me disse uma vez: “você sabe melhor do que eu o que eu quero falar”. Por isso a importância de se fazer um treinamento relativo às dificuldades deles. Alguns chegam muito afoitos, querendo passar uma série de informações e acaba não saindo nada. Na hora que eles percebem que a comunicação está fluindo, aí sim eles dizem exatamente aquilo que queriam dizer.

Muitos pacientes também têm síndrome metabólica, o que é isso? No caso de uma criança, por exemplo, vamos supor que ela tenha pneumonia, quando a doença pode ser tratada, ela sara e acabou.  Agora, quando o idoso tem uma pneumonia, logo desencadeiam outros problemas como: diabetes, hipertensão, colesterol alto. Ele não vai sarar. Vai ficar igual aos pratinhos chineses, controlando e se mantendo.

Não se pode ignorar ainda que, geralmente, você trata de uma pessoa que tem o que chamamos de polifarmácia, que toma muito remédio, o que diminui o fluxo salivar e acaba deixando a boca mais sensível. Assim, com certeza o idoso vai contar que o primeiro dentista dele era muito bom e que agora nada dá certo. Mas é necessário ponderar que naquele tempo ele tinha mais osso, mais saliva, a pele era mais flexível.

RCE – Existem critérios para a seleção das pessoas beneficiadas?

MLF – Nós temos que limitar o atendimento, não funcionamos todos os dias como um posto de saúde e selecionamos os casos. A escolha é baseada também nas pesquisas, porque somos cobrados no diz respeito à produção científica. Quem atende são os alunos da pós-graduação e eles selecionam os pacientes de acordo com as suas pesquisas.

Por exemplo, estamos com uma linha de pesquisa relacionada aos distúrbios do sono. Dessa forma, quando o paciente chega, nós perguntamos: “o senhor concorda em ir até determinado instituto para fazer uma poli-sonografia depois que nós fizermos uma intervenção? Vamos avaliá-lo a longo prazo o que quer dizer que o senhor vai ter que repetir o procedimento”. Então, você fala tudo isso e a partir daí os idosos precisam assinar um termo de consentimento para entrar no estudo.

Os eventos anuais tem a intenção de envolver aquelas pessoas idosas, que não foram incluídas nos estudos, mas que tirariam proveito das informações, que são fornecidas por meio de palestras. De repente, aparece outro trabalho e podemos convida-los. Eu também faço um banco de dados, mas o fato de eles virem até aqui é mais produtivo para sabermos se eles estão em condições de participar de algum estudo. O evento é a ocasião que aproveitamos para organizar palestras e tentamos mostrar que é possível envelhecer com qualidade de vida.

RCE – Há espaço para quem deseja se voluntariar? De que forma é possível contribuir com o programa?

MLF – Sim. Recentemente, tivemos uma profissional que veio de Minas Gerais, ela é dentista, mas não quer atender, prefere conversar com as pessoas. O que é muito importante, porque os idosos gostam de falar, querem atenção e aqui não tem fila preferencial, todos eles são iguais. Alguns até tentam argumentar “o que eu vou fazer se na minha idade eu não posso mais esperar?”. Outros encaram a situação com bom humor: “quero uma fila preferencial, estou grávida”.

No que diz respeito aos recursos financeiros, a faculdade arca com os custos dos trabalhos que são feitos aqui. Já sobre os trabalhos que a gente terceiriza, ela não pode dar desconto. Mas o Envelhecer Sorrindo é também uma ONG e assim nós conseguimos arrecadar dinheiro para pagar o tratamento de alguns pacientes cuja condição social seja deficitária. Temos uma paciente de 102 anos que trabalha na feira e ela vem aqui sozinha, sem bengala ou muleta, nada. Ela estava sem prótese porque o neto, que tem certo grau de comprometimento cognitivo, deu um destino desconhecido à mesma. Nós entendemos a situação, refizemos as próteses e ela está de volta à feira.

RCE – Em relação às pesquisas, que caso marcou recentemente o trabalho dos alunos da pós-graduação?

MLF – Certa vez, fizemos a prótese para a irmã de uma senhora que ainda tinha os dentes e ela ficou tão satisfeita com o resultado que também quis refazer as suas. Eu expliquei para ela que como fazia 20 anos que a irmã dela estava com a mesma prótese, grande parte do resultado estético que tínhamos alcançado se devia a isso. Mas ela cismou que era porque nós tínhamos feito o atendimento e disse que parecia até que a sua irmã tinha passado por uma cirurgia plástica. Por fim, ela resolveu extrair os dentes, buscando, para isso, atendimento fora da USP e retornou depois.

Fizemos as próteses para ela e durante o período de adaptação um dos nossos dentistas observou que uma lesão corriqueira não desaparecia, apesar da nossa intervenção. Encaminhamos o caso para a disciplina de diagnóstico bucal, que realizou uma biopsia, que acusou a presença de uma lesão bastante agressiva. Geralmente, essa lesão pode ocorrer na faixa dos 30 anos, na mandíbula. Ela estava com 85 anos e o tumor tinha aparecido no maxilar. Isso despertou muito o interesse dos alunos, era caso de publicação internacional, não tinha nada em nenhum livro.

Por onde ela andou os médicos queriam operar, mas como esse tumor é muito agressivo ele costuma provocar mutilação. Felizmente, o caso foi diagnosticado bem no início e a operação foi bem sucedida. Recebemos muitos cumprimentos pelo nosso serviço e pelo fato de a descoberta ter sido rápida, o que evitou que a paciente ficasse mutilada.

Nessa fase da vida em que você tem tantas perdas, não é? Seu cabelo perde a cor, a pele perde o brilho, você ainda vai perder parte do rosto? É algo bem ruim. Até hoje ela vem aqui, quer trabalhar, ajudar os professores. Nós buscamos trabalhar sempre com muito rigor e sabemos que têm cientistas que não podem fazer o mesmo porque é comum que tenham apenas dez minutos para poder tratar de cada paciente, o sistema de saúde muitas vezes faz isso. Eu costumo dizer que aqui nós vivemos em uma ilha da fantasia, onde nos são oferecidas condições de trabalho muito especiais.

RCE – O que fez o programa Envelhecer Sorrindo se organizar para ir além do tratamento odontológico relacionado às próteses?

MLF – Com o projeto, percebemos que atuando na boca, facilitaríamos a alimentação do paciente e, assim, ele teria mais saúde. Tendo mais saúde e ficando bem esteticamente, ele se sociabilizaria com mais segurança. Se sociabilizando, poderia sair do seu mundinho e, depois, como consequência, poderia, inclusive, se prevenir melhor das doenças que chegam com o envelhecimento.

A gente não entende o envelhecimento como algo paternalista, que se restringe a uma visita anual a determinada instituição, onde nós poderíamos fazer algumas próteses e não dar assistência depois. Mesmo quando o tratamento acaba, eu sempre reforço: “pode ser depois de um mês, dois meses, um ano, você pode voltar quando quiser, porque tem uma história aqui conosco”. Essa postura é curiosa até, porque quando o paciente vem a falecer, geralmente, a família nos avisa, manda uma carta, agradece pelo quanto a vida do idoso mudou depois do Envelhecer Sorrindo. É muito bom, sentimos que o projeto se transforma em um centro de referência para eles.

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