
Pandemia. É quase impossível falar de qualquer acontecimento dos últimos dois anos sem citar este singular e trágico contexto. Em todas as partes do mundo, em todas as áreas da vida, algo de essencial teve de ser transformado. O tempo ficou suspenso, assim como projetos, realizações, relações afetivas, laços familiares, todos eles lançados às incertezas e preocupações de como viver agora.
Com o teatro não foi diferente. O teatro: por definição, a arte do encontro. Espaços culturais fechados, palcos vazios, profissionais da cultura à míngua. Logo vieram as adaptações possíveis; o ensino remoto, a casa tornada cenário e os aplicativos como espaços de plateia. É função do artista a reinvenção. Em cena, universos se constroem, destroem e se reconstroem na fluidez de um gesto ou na embocadura de um verso.
Não se trata de exaltar essa resiliência, forjada no seio da necessidade de sobrevivência e não mobilizada pelo ímpeto criativo, mas de apontá-la como circunstância indesviável. Como espectro atávico destes tempos que correm. O teatro segue pulsando, assim como segue em crise, assim como talvez sempre tenha sido. Não há como ignorar isso.
Por isso, para a premiação de Artes Cênicas no Programa Nascente USP 2021, mudanças substanciais nas subcategorias: não mais as encenações, os numerosos coros e as (momentaneamente indesejáveis) aglomerações. Agora, o monólogo, a direção de monólogo e o texto dramatúrgico.
Curiosamente, dentre as inscrições, apenas dois monólogos e um projeto de direção de monólogo. Foi majoritariamente a dramaturgia que ganhou o palco do Nascente 2021 na categoria Artes Cênicas. Ali, nas palavras meticulosamente escolhidas já com vontade de se tornarem ações, muitos mundos colidiram.
Ecos de Beckett, Brecht, Ibsen… textos que flertam com o tanto que veio antes, mas que também visam desenhar o que ainda virá. Pudemos ler obras que dialogam entre si sem nem saber e então avaliá-las, sem perder de vista a reflexão em torno de como se avalia a arte, questão que deve sempre repercutir nestes processos de comissões.
Os temas urgentes atravessados por estruturas dramáticas, épicas, performativas, líricas; a busca pela singularidade de cada pessoa autora. A tão-falada carpintaria dramatúrgica e a lida de cada artista com as palavras, diálogos, narrativas e a construção (ou não) de personagens.
Dentre as finalistas, uma bonita diversidade temática e formal. Arraigada – a saga popular de uma heroína, apresentação de monólogo de Giovani Bruno Magalhães Costa (Técnico em Teatro/EAD-ECA), celebra a ancestralidade do artista em uma homenagem à sua mãe e suas histórias – e o que elas podem significar para a memória coletiva de uma população.
Futuro do Pretérito, de Murilo Tiago Franco de Freitas (Letras/FFLCH), lançava o olhar sobre uma família e um lançamento imobiliário para colocar em xeque as relações de poder e o direito à cidade na contemporaneidade.
Por um Pingo, de Dante Cabelho Passarelli (Mestrado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês/FFLCH), também trazia o mercado imobiliário como pano de fundo, mas trazendo à tona o que está escondido nas tantas paredes da metrópole e seus passados soterrados.
Pequenos Sumiços, de Gustavo Di Giorgi Ramos (Ciências Econômicas/FEA), trazia uma moradia estudantil para o centro da cena. Tragédias do cotidiano escancaradas em uma situação que insiste em se repetir.
A última raposa do mundo, de Moisés Mendoza Baião (Letras/FFLCH), é uma fábula pós-apocalíptica. Na poesia desenhada pelas palavras, a cena torna-se imaginação, mas sem perder de vista o diálogo com o mundo que nos cerca.
Obras que falavam diretamente ao presente, seja no resgate do passado ou no vislumbre de futuros. A criação artística é olhar para o horizonte e enxergá-lo mesmo quando o céu está baixo demais; é lançar-se além do que se pode ver e imaginar para falar do que é mais tangível, cotidiano e caro a nós.
Um texto no papel e um leitor que vislumbra sua mise-en-scène. Uma pessoa em cena ou um pequeno coletivo que lê as palavras no papel diante de três jurados e uma equipe técnica. Uma ou cem pessoas assistindo via internet. Há vontade de teatro por toda a vida que pulsa, e a vida insiste em pulsar. Na categoria de Artes Cênicas do Nascente 2021, não teria como ser diferente.
Comissão Julgadora da Categoria de Artes Cênicas
Amilton de Azevedo
Artista-pesquisador, crítico e professor de teatro. É mestre em Artes da Cena, especialista em Direção Teatral e bacharel em Teatro pela Escola Superior de Artes Célia Helena, onde lecionou entre 2016 e 2019. Criou a plataforma ruína acesa em 2017, onde publica regularmente textos sobre teatro e audiovisual. Também escreveu para a Folha de S. Paulo e festivais como o MIRADA e a MITsp. Membro da seção brasileira da IACT/AICT (Associação Internacional de Críticos de Teatro). Acredita que a crítica é poética e deslocamento; provocadora cúmplice da obra e convite ao teatro.
Bete Dorgam
Bete Dorgam, atriz e diretora teatral, formada pela Escola de Arte Dramática,onde atualmente é professora de Interpretação . Docente na Escola Superior de Artes Célia Helena,é doutora em Artes Cênicas pela ECA/USP . Em 2010 recebeu o premio Shell como melhor atriz pelo espetáculo Casting, dirigido por Marco Antonio Rodrigues e em 2014 o Premio Qualidade Brasil como melhor atriz em comédia pelo espetáculo Assim é se lhe parece, de Luigi Pirandello,com direção de Marco Antonio Pâmio.
Felisberto Sabino da Costa
Felisberto Sabino da Costa Realizou Mestrado (1990) e Doutorado em Artes Cênicas (2000) na Universidade de São Paulo. Professor Titular do Departamento de Artes Cênicas da ECA/USP. Cumpriu um pós-doutorado, em 2011, na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Trabalha, atualmente, com os seguintes temas: dramaturgia e máscara. É coordenador de O Círculo – Grupo de Estudos Híbridos das Artes da Cena.